O ARQUIVO LIMINAR
O ESPECTRO NO ARQUIVO DO COLECIONADOR
ou
A COLEÇÃO COMO MÉTODO DO ESTRANHO
O Arquivo Liminar é uma investigação em arte que propõe interrogar, em consonante prática artística, a materialização do espectral nos fragmentos arquivais do artista-colecionador, através da ação do estranho e do uso da ficção como meio – informado pela prática artística de Marcel Broodthaers – que procura capturar e configurar, ao mesmo tempo, uma realidade e o que esta oculta (Krauss, 1999, p. 47).
A sua prática faz-se na formação de um arquivo pessoal, zelado por um arconte ficcional. Este espólio é constituído de registos fílmicos pessoais, documentos, textos, objetos herdados por familiares e objetos originais ou produzidos a partir da montagem, recodificação ou remediação das materialidades anteriores e a partir das quais o artista constrói uma diegese que alia a investigação do tópico à potência espectral do arquivado.
A partir de uma perspetiva benjaminiana (Benjamin, 2002, pp. 203-211), a investigação especula o artista enquanto colecionador obsessivo: acumulador, (an)arquivista, atormentado pela eventual ou inevitável destruição do seu espólio e assombrado pelos espectros da sua própria coleção.
Esta preocupação traça um paralelo psicanalítico com o arquivo no discurso da história, alternando do foro do íntimo para o coletivo. Schelling fala-nos de segredos que “testemunharam” um passado histórico, mas que foram forçados a um enterramento e reduzidos a mistérios – para dar lugar à criação do mito –, para voltar sob a forma do estranho (Vidler, 1992, p. 26-27). Passado quase um século, Derrida reflete sobre a pulsão de morte extrapolada para pulsão de destruição histórica do arquivo, de apagamento de traços arquivais (Derrida, 1995, p. 23-29), desconstruindo a noção de arquivo para ler além do que é patente e encontrando o que é latente em traços de recalque e repressão, que atravessam o arquivo no discurso da história enquanto véus de espectralidade. Assim, do trauma das catástrofes da humanidade e enterramento resultam “cicatrizes”, ruínas benjaminianas dos espectros dos vencidos que não se puderam fazer valer no discurso da história (Handelman, 1991, p. 346), ou dos mistérios schellingianos soterrados (Schelling, 1966, vol.2, p. 649) que a história decide destruir, oprimir, apagar ou esquecer compulsivamente. Então, através de uma “ação diferida” – de retorno após um período de latência – surgem não só fragmentos arquivais como os espaços lacunares que os completam. Estes são elementos que se configuram, se montam, para «dar a conhecer apesar de tudo aquilo que é impossível ver inteiramente, aquilo que permanece inacessível como um todo.» (Didi-Huberman, 2012, p. 176)
O projeto culmina num site que opera com um repositório expositivo e numa exposição onde o materializado pela prática artística se espalha pela topografia do espaço como uma “granada fílmica” que se detonou, estilhaçando a ficção no equivalente aos subprodutos que compõem uma produção cinematográfica. Guião, adereços, fotografias de reperage, brutos da captação de imagem, faixas sonoras de diálogo, composição musical ou bruitage, entre outros, estão agora elevados a objetos de equiparável relevância, peças de um atlas (na senda de Didi-Huberman), «uma coleção de coisas singulares, cujas afinidades produzem um “estranho” e infinito conhecimento (nunca fechado)» (Didi-Huberman, 2010, p. 15).
Palavras-Chave:
Colecionador, Arquivo, Espectro, Ficção, Montagem.
– E se eu lhe dissesse, meu bom homem, que a humanidade já não existe. Aliás, que se extinguiu faz já muito, muito tempo. Seja porque o Sol engoliu o seu sistema planetário, ou até mesmo pois, na corrida desenfreada do progresso, a Humanidade foi naturalmente vítima do que tende a acontecer sempre que se sobe um degrau na escala de Kardashev, validando assim o paradoxo de Fermi. Que todos aqueles preciosos itens que tanto lhe aprazem se perderam, se incineraram, se desintegraram, se dissolveram, se desfizeram, se eclipsaram. Enfim, acabaram. E que o cosmos fez questão de eliminar mesmo as sondas mais insistentes e aventureiras, ora com chuvas de meteoritos, ora com supernovas.
Mas... e se lhe falasse num espaço que encerra o arquivo de tudo. Tudo o que o homem fez, viveu, descobriu, sonhou. Uma totalidade abrangida por um lugar muito especial, onde não há sujeito possível dentro do espaço da realidade que pudesse ocupar um ponto de vista. Estaria perante a construção de um lugar de subjetividade impossível, uma subjetividade que confere à própria objetividade um aroma de mal indizível e monstruoso. Um sítio onde se o espaço for infinito, estamos em qualquer ponto do espaço, assim como o tempo. Mas uma coisa é saber que tal sítio existe e outra completamente diferente é saber como lá chegar...
– E como posso... – comecei a preguntar. No seu esgar perene, a pequena caveira interrompeu-me, respondendo dentro da minha mente. – Arkhé é insular. Uma viagem implica pagar o seu preço em sangue. Em dor.
Um projeto de Jerónimo Rocha desenvolvido no contexto de Doutoramento em Artes Plásticas da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto.