Passaram-se semanas. Voltando para casa do trabalho, como em qualquer outro dia, deparei-me com uma encomenda. Ou melhor...uma encomenda deparou-se comigo. Mesmo no topo das escadas, à porta de casa. Abri-a. No seu interior, uma campânula de vidro. Uma campânula como qualquer outra. Mas esta era diferente. Não muito pequena. Não muito grande. Mesmo à minha medida. O seu interior... mais... familiar... que a minha própria casa. Sentei-me e fiquei a observa-la por muito tempo. E depois... e depois decidi... e depois decidi experimentá-la. Para ver se me servia. E então meti a cabeça lá dentro. A princípio nada, mas logo, de subido, algo aconteceu. De dentro ecoou uma voz (na minha cabeça). Falava em alemão, mas por algum estranho motivo, conseguia compreendê-la. E o que me disse não esquecerei tão cedo.
– Bem-vindo a casa, meu bom homem. Estivemos à sua espera.
Antes de entrar uma onda de gelo percorre o meu corpo. Esta ansiedade não é tomada pela emoção de um confronto com o luto. É mais animal. Quase primordial. Como um rito primitivo de passagem. Entramos. A sala é escura. O chão de mármore lascado e a parede revestida de gavetões metálicos toscamente pintados com uma tinta de esmalte esverdeado transportam-nos para o final do século XIX, inícios dos XX. A minha tia aperta-se contra o meu braço com mais força, enquanto uma jovem funcionária se aproxima, empurrando o que parece ser uma mesinha metálica com rodinhas, coberta por um pano branco. A uns metros de nós torna-se aparente o que aquilo é de facto: um corpo. Um corpo debaixo daquele pano. Um arquivo, outrora aceso, fora queimado e jaz apagado lá dentro. Dentro daquele corpo. Debaixo daquele pano. Sem cerimónias, a funcionária remove o pano, desvendando o volume de carne. Uma figura em cera. Um homem seco, mirrado, aninhado em posição fetal, está a uns metros de nós.
Um projeto de Jerónimo Rocha desenvolvido no contexto de Doutoramento em Artes Plásticas da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto.